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Channel: Luciana Fróes - O Globo
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Roberta Sudbrack passa a limpo a pandemia: 'é fundamental enxergar que tudo mudou, que a natureza mandou recados fortes e definitivos'

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Com apenas um ano de funcionamente, o Passaro Verde encarou os ventos implacáveis da pandemia: a ultima empreitada da chef Roberta Sudbrack, sem placa na porta e enxutas 12 mesas pelo salão, teve que fechar as portas. Prestes a completar um ano de protas fechadas, numa série de entrevistas que venho fazendo para marcar os dez anos do Rio Gastronomia, Roberta e eu conversamos sem pressa nenhuma e passamos a limpo esses tempos inéditos e incertos. Parte de nosso papo, está no link. Abaixo, um mergulho mais profundo desse nosso encontro.
Foi um ano muito duro em muitos sentidos. Não apenas na manutenção dos negócios e dos empregos de tantas pessoas e famílias que dependem de nós. Mas emocionalmente, foi pesadíssimo também. Uma equipe é a junção de muitos sentimentos, e num momento como esse, de guerra literalmente, saber lidar com as angústias, os medos e as inseguranças das pessoas que fazem parte do seu time, é tão importante quanto escolher um bom ingrediente para a sua receita.
Nós optamos por fazer tudo na contra mão, pra variar! Eu não gosto das auto estradas, sempre preferi as vicinais. Quando todos os restaurantes da cidade estavam fechados, nós não tínhamos opção, senão, aprender a fazer o tal delivery, se quiséssemos manter o sonho do Sud vivo.
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Me lembro como se fosse hoje, não tinha nada aberto na cidade. Nada! Não se encontrava embalagem em lugar nenhum. E a gente não tinha embalagem porque nunca tinha feito delivery! Os correios estavam parados. As empresas estavam todas fechadas.  
E nós estávamos lá, como quem não abandona uma guerra. Convencendo os fornecedores a venderem alguma coisa. Incentivando os pequenos produtores a não pararem, a não desistirem! A gente falava com eles e sentia o desespero no tom de voz. Entãoligávamos e pedíamos para trazerem tudo, comprávamos tudo que eles tinham, na esperança de vender, mas acima de tudo, de dar a eles a sensação de que as coisas iriam se ajeitar. 
O Sud se transformou num front de guerra e nós nos negávamos a desistir. Era um sentimento de sobrevivência mesmo. Montamos um esquema de entrega da nossa comida com taxistas conhecidos, e os mesmos taxistas:, levavam e traziam as pessoas da equipe, de casa para o trabalho, do trabalho para casa, a fim de não expor ninguém nos transportes públicos. Os empréstimos não vinham - e não vieram - a indefinição sobre o futuro era sombria.
Foi um momento muito, muito duro. Me lembrou muito a época que perdi meu avô - que me criou, junto com a minha Vó - da noite para o dia, em que fui obrigada a fazer alguma coisa para manter o sustento da nossa casa. Na época fui vender cachorro quente na rua, numa carrocinha que troquei por um freezer! Minha Vó trabalhava duro, fazia todos os molhos, todos os preparos, e eu passava a noite na rua vendendo nosso cachorro quente. Foi uma época duríssima, dolorosa mesmo. Um sentimento muito parecido com o que experimentamos em 2020.
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Depois veio a flexibilização, os restaurantes poderiam reabrir com 50% da sua capacidade. O Sud tem só 12 mesas, reabrir com 6? Colocar as pessoas em risco? Optamos mais uma vez por uma decisão pouco ortodoxa e resolvemos manter o Sud fechado, operando só com o delivery e mantendo o mesmo esquema de transporte - a equipe vai e volta para casa com os táxis que ainda fazem as entregas do nosso delivery.
Seguimos assim até o final do ano. Temos todos muitas saudades do Sud, do som das gargalhadas das pessoas, do entra e sai de gente o dia inteiro. Ficávamos abertos durante todo o dia, você podia ir lá almoçar, tomar um café da tarde, jantar cedo, almoçar tarde. O Sud era um exercício de liberdade lindo. Estamos na luta! Esperamos conseguir segurar as pontas até que seja possível reabrir com segurança.
Emocionalmente ele faz muita falta para mim, para a equipe, para os nossos clientes, amigos e vizinhos. Acho que ele faz falta para a cidade também, porque é uma espécie de sonho ousado e atrevido, que deu certo. No Sud não fazemos alta gastronomia, no sentido que optamos por reconhecer esse conceito até hoje. Mas no fundo, fazemos, de uma outra forma, mas fazemos. Porque optamos por deixar de lado todo o excesso que esse tipo de conceito exigia, mas não abandonar a parte mais importante do conceito: a qualidade máxima. Hoje, eu tenho uma conexão muito mais próxima com os pequenos produtores do Brasil inteiro. Vejo a minha cozinha hoje, muito mais brasileira. Usamos produtos de altíssima qualidade, com o mesmo critério e exigência que sempre fez parte da minha maneira de enxergar a cozinha, mas com muito mais liberdade.
Na verdade, podemos dizer que ao invés de alta cozinha, fazemos uma cozinha de altíssima qualidade! O que é sem dúvida a evolução do conceito. Já estava mais do que na hora de rever os pilares desse conceito, e acho que esse ano, nos mostrou muito claramente que essa necessidade persiste. Cada um vai encontrar o seu jeito, essa é a grande graça da gastronomia. Sem a criatividade, a liberdade e a qualidade, não se faz nem alta, nem baixa, nem média gastronomia. Cada um vai encontrar o caminho que mais adeque ao seu pensamento e com certeza vamos viver uma nova fase talvez tão interessante quando a que eu vivi quando abri o RS, há 15 anos atrás, com uma proposta ousadíssima! 
Mas não sou mais aquela cozinheira que se deixa inebriar por certas coisasFaz parte da nossa evolução como seres humanos, rever conceitos. Reavaliar as coisas, a maneira de pensar e de agir. Eu vivi os anos mais do que dourados da gastronomia brasileira. A minha geração literalmente arou o solo e plantou as sementes para o que esperávamos que viesse. Fomos ousadíssimos! Corajosos e desapegados. Viajamos pelo mundo inteiro para falar de Brasil, Brasil, Brasil! Muitas vezes, pagando tudo do nosso bolso, sem ajuda, sem incentivo. Por amor a esse Brasil, seus artesãos, sua história, sua tradição e inovação também.
Com o RS e seu conceito ousadíssimo para a época, colocamos o Rio de Janeiro no mapa da gastronomia mundial num momento de profunda ebulição, criatividade e evolução.
Havia no ar um sentimento de construção. Existia a competição, mas era algo mais doce, mais respeitoso. Me lembro de ter subido incontáveis vezes aos palcos para receber os inúmeros prêmios que eu ou o RS recebemos, e sempre havia um cozinheiro que também estava concorrendo àquele prêmio, lá embaixo, me esperando para um abraço afetivo. Competir era gostoso porque o respeito estava acima de qualquer competição. Mandávamos mensagens afetivas uns para os outros no dia seguinte.
Quando algum de nós alcançava algum posto mais alto do que o outro, comemorávamos como um feito conjunto. Me lembro que quando o RS chegou a 10° melhor restaurante da América Latina, a gastronomia carioca comemorou aquilo como algo nosso, carioca, e não só do RS, ou meu.
Não é saudosismo, mas algo se perdeu em algum momento. Também não é amargor. Sou uma cozinheira apaixonada, tenho na pele a convicção do meu ofício e da alegria que ele precisa exalar para existir e se expressar. Levo tudo muito a sério, sofro com tudo, me entrego por inteiro. Claro que me machuco, mas me realizo.
A evolução tem um Q de involução. Dar passos para trás não significa ignorar o presente ou o futuro, muito pelo contrário... Evoluir é justamente fazer essa reflexão, reavaliar, repensar, e se for preciso, andar um pouquinho para trás.
O Sud, o pássaro verde, é isso, uma reflexão, um repensar. Ainda assim, é ousadíssimo! Viu lá na frente. E tem um caminho lindo para trilhar ainda. Eu não tenho mais algumas ingenuidades, a vida vai tirando isso da gente. Mas faço questão de manter algumas, sonhar é uma delas. Porque quando você perde o frio na barriga, acabou!
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Tudo mudou. E tudo precisará mudar. Ainda que delicadamente, mas precisará. O lugar para qualquer um que acredite no que faz, sempre estará garantido. Porque um projeto que é construído com alicerces amparados na paixão e no trabalho, vai sempre dar certo. 
Pouco importa se é alta, baixa ou média gastronomia! Isso é o que menos importa nesse momento. Agora precisamos reescrever algumas páginas que o sofrimento desta pandemia rasgou. Estamos todos na mesma, acreditando nos nossos sonhos. Quem acredita de verdade e coloca todas as suas forças e energias nisso, com certeza viverá.
Mas será fundamental enxergar que tudo mudou. Que a natureza mandou recados fortíssimos e definitivos. Que todos nós fomos obrigados a reavaliar tanta coisa e por isso mesmo, a relação com a cozinha volta a ser intrínseca, emotiva e visceral. Os encontros, a sociabilização, voltam a ser algo tão fundamental quanto respirar. Logo, vamos precisar reavaliar esse contexto para que possamos aproveitar cada momento com muito mais alegria e entendendo o quanto cada encontro desses representa na nossa vida.
Cada um saberá o que fazer, porque não é possível que alguém tenha passado por tudo isso e não tenha reavaliado ou aprendido alguma coisa.
Acho que assim como o advento da cozinha molecular ou tecnoemocional - você gostando dela ou não - foi importante para tantas mudanças que vivemos na gastronomia. Porque diante de tanta inovação, tanta novidade, tanta experimentação, até quem não era fã desse tipo de cozinha, como eu, foi obrigado a se mexer, a fazer diferente, a propor algo novo. A fase que estamos vivendo também será importantíssima para restabelecer um novo diálogo com a comida, com a cozinha, com o próprio ser humano. Estou apostando as minhas fichas no melhor que está por vir! 

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